Intelectual rigoroso e professor formador de gerações, Cano articulou história e economia para interpretar a industrialização, as desigualdades regionais e o papel do Estado.
Por Davi Carvalho
O Conselho Universitário da Unicamp aprovou a concessão do título de Professor Emérito (post mortem) a Wilson Cano, um dos fundadores do Instituto de Economia (IE). A decisão, anunciada em 30 de setembro de 2025, enaltece a importância de um professor que ajudou a dar identidade à universidade e cuja obra segue influenciando a forma como o Brasil pensa seu desenvolvimento.
Cano chegou à Unicamp em 1968, quando a instituição ainda buscava se afirmar no cenário acadêmico. Foi parte do grupo que estruturou o curso de Ciências Econômicas e, mais tarde, o próprio IE. Não tardou para se tornar referência em debates sobre industrialização, desigualdades regionais e a inserção do país no sistema internacional.
Filho de uma família de seis irmãos, trabalhou desde cedo para ajudar em casa. Estudava à noite e guardava na memória o cansaço das jornadas duplas. “Estudar foi sempre um sacrifício. Você trabalha durante o dia, estuda à noite, e sobra pouco tempo para ler um livro, um artigo. Mas foi assim que me formei”, disse, em depoimento gravado para o projeto Memória Científica, da TV Unicamp. As citações diretas apresentadas abaixo foram retiradas do vídeo citado anteriormente, disponível ao final ddo texto.
Formou-se economista na PUC-SP, mas seria nos cursos da Cepal, nos anos 1960, que encontraria a chave para compreender as desigualdades latino-americanas. Foi nesse espaço, que reunia nomes como Celso Furtado e Raul Prebisch, que se debruçou sobre as raízes do subdesenvolvimento. “O curso da Cepal me abriu, desnudava o que era economia latino-americana. Foi aí que entendi as raízes do subdesenvolvimento, da pobreza, da distribuição de renda”.
Raízes da industrialização
A marca desse aprendizado apareceria em sua tese de doutorado, defendida em 1977 e publicada como Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. O trabalho revelou como o complexo cafeeiro paulista, ao articular imigração, mercado interno e infraestrutura ferroviária, preparou o terreno para a centralização industrial no Centro-Sul.
Essa leitura tornou-se um ponto de inflexão. Em vez de aceitar explicações simplistas, Cano propôs investigar a formação histórica e estrutural das desigualdades. A partir dali, mergulhou em temas que se tornariam centrais em sua produção: os desequilíbrios regionais, o papel do Estado no desenvolvimento, a urbanização acelerada e, mais recentemente, a desindustrialização em meio à globalização financeira.
Para o diretor do Instituto de Economia, Célio Hiratuka, o título aprovado pelo Consu expressa essa dupla dimensão: “A aprovação do título de Professor Emérito é um reconhecimento da contribuição intelectual do professor Wilson Cano para o debate sobre economia no Brasil, em especial na área de economia regional. Também é um reconhecimento pelo extenso trabalho de formação que exerceu ao longo de sua vida. Foram 50 anos de aulas, pesquisas e orientações que deixaram uma marca importante em diferentes gerações de economistas no país e na América Latina”.
Como professor, insistia no rigor dos dados, mas também lembrava que as estatísticas não faziam sentido sem o fio da história. “Sempre que estou raciocinando sobre um problema presente ou pensando no futuro, eu olho o passado, tentando receber alguma lição”, costumava dizer.
Suas aulas formaram economistas que levaram adiante a tradição crítica da chamada “Escola de Campinas”. Para os alunos, Cano transmitia não apenas conhecimento técnico, mas uma postura diante do país: a de que compreender a economia exigia interrogar suas contradições mais profundas.
Colegas de trajetória ressaltaram essa dimensão. O economista Carlos Antônio Brandão escreveu, em 2021, que Cano “persistiu até o final da vida elaborando e discutindo um projeto nacional de desenvolvimento, sonhando com um país mais soberano e menos desigual”. Já a professora Maria do Livramento Clementino destacou a influência decisiva de seus estudos sobre a urbanização no Nordeste e sobre a relação entre agricultura e indústria.
Wilson Cano morreu em Campinas, em 3 de novembro de 2021, aos 84 anos. Sua ausência foi sentida em todo o meio acadêmico, mas a memória seguiu viva em seus livros, nos trabalhos de seus orientandos e nas agendas de pesquisa que ajudou a inaugurar.
Um título, uma herança
O título de Professor Emérito se trata de uma homenagem formal que inscreve sua obra na história institucional da universidade e do país. Essa herança também foi registrada pelo Instituto de Economia em outubro de 2021, quando a Comissão de Pesquisa organizou uma edição especial da revista Economia e Sociedade dedicada ao professor. O dossiê reuniu quinze artigos que percorrem diferentes dimensões de sua produção.
Neles estão reflexões sobre a soberania e a industrialização como fundamentos da integração nacional; revisões do mito do “imperialismo paulista” e das interdependências regionais; análises da urbanização desigual e de seus efeitos no Nordeste; e debates sobre a desconcentração produtiva, a desindustrialização e o papel do Estado.
O reconhecimento concedido agora pelo Consu dialoga com esse esforço de memória. Ao rememorar Cano, a universidade reafirma a importância de pensar o Brasil a partir de suas raízes, de suas contradições e de suas possibilidades de transformação. Como ele próprio dizia, “não aprendi a pescar, não sei fazer outra coisa a não ser ser pesquisador e professor”.