A dissertação de Paulo Henrique Resende, vencedora do Prêmio Fiesp em Economia 2025, mapeia como a inteligência artificial reorganiza as trajetórias tecnológicas e redes de propriedade no setor farmacêutico mundial.
Por Davi Carvalho
O avanço da inteligência artificial (IA) inaugurou uma nova etapa na concorrência tecnológica global e, no setor farmacêutico, vem alterando tanto o ritmo das inovações quanto a estrutura de poder entre as corporações que as controlam. Essa é a principal conclusão do economista Paulo Henrique Resende, autor da dissertação “O setor farmacêutico na era da IA: uma análise de redes de tecnologia e propriedade”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
O trabalho recebeu o Prêmio FIESP de Economia Industrial 2025, concedido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) a dissertações e teses de excelência sobre temas estratégicos para a indústria brasileira, nas áreas de indústria, política industrial, sustentabilidade e desenvolvimento econômico.
Para o orientador Célio Hiratuka, o prêmio representa o reconhecimento de um percurso acadêmico marcado por rigor e curiosidade intelectual. “É a coroação de um esforço consistente. O Paulo sempre foi muito diligente, atento ao aprendizado teórico e à incorporação de novas ideias e bibliografias. Esse compromisso com o método e com o conhecimento se reflete na qualidade da dissertação”, afirma. Segundo ele, o trabalho também se destaca pela escolha do tema: “Ele soube captar a relevância da indústria farmacêutica durante e após a pandemia e, ao mesmo tempo, antecipar como o setor vem incorporando rapidamente a inteligência artificial em suas estratégias de inovação.”
Mapeando as redes globais de tecnologia e propriedade
A pesquisa reconstitui, a partir de mais de cinco mil registros da base internacional PATSTAT, a rede global de patentes que relaciona a inteligência artificial a tecnologias farmacêuticas. Resende analisou como esses vínculos evoluíram nas últimas quatro décadas, mapeando não apenas os fluxos de conhecimento — expressos nas citações entre patentes —, mas também a estrutura de propriedade entre empresas detentoras dessas tecnologias. O objetivo foi identificar quais trajetórias tecnológicas se consolidaram, que firmas lideram os principais nichos e como a IA se difundiu entre áreas antes desconectadas do campo biomédico.
Os resultados apontam para uma fragmentação crescente. Mesmo pertencendo a um mesmo paradigma tecnológico, as aplicações da IA no setor farmacêutico se concentram em subcampos relativamente isolados. A análise das citações identificou dez grandes componentes tecnológicos, entre eles tratamento de diabetes, imunoterapias, diagnósticos por imagem, terapias avançadas e medicina nuclear. O maior deles, com 499 patentes, está relacionado ao tratamento de diabetes — área em que o uso de IA para controle de insulina, monitoramento remoto e diagnóstico precoce vem crescendo desde 1986 e se acelerou a partir de 2016.
Segundo o autor, essa concentração tem efeitos diretos sobre a inovação e o acesso global a medicamentos. “As grandes farmacêuticas se apoiam fortemente em direitos de propriedade intelectual para monopolizar nichos de mercado, o que restringe a concorrência e limita o acesso a soluções tecnológicas”, explica Resende. Ainda assim, ele vê espaço para maior inserção dos países periféricos. “No paradigma da IA, as barreiras à entrada e as economias de escala se tornaram relativamente menos importantes. Isso abre oportunidades para que esses países inovem em nichos de tecnologia de ponta — como imunoterapias, diagnósticos por imagem e tratamento de diabetes —, por meio de parcerias de pesquisa, acordos de licenciamento e alianças com grandes empresas, de modo a ampliar suas fontes de financiamento e conhecimento estratégico.”
A dissertação mostra que, apesar da expansão do número de patentes e da entrada de novas empresas, a rede é altamente concentrada em torno de poucos atores. Grandes farmacêuticas e empresas de tecnologia — como Medtronic, IBM e Tandem Diabetes Care — detêm as patentes com maior relevância tecnológica, mas o trabalho também identifica empresas menores especializadas em nichos estratégicos, especialmente nas interfaces entre biotecnologia, diagnóstico digital e terapias personalizadas. Essa coexistência de corporações globais e firmas emergentes reflete um ambiente de inovação desigual, em que a liderança científica não implica necessariamente domínio de mercado.
A análise das redes de propriedade revela outro movimento: a financeirização da inovação farmacêutica. Fusões, aquisições e participações cruzadas criam uma teia de controle corporativo que atravessa fronteiras e setores. O estudo mostra que parte das startups mais inovadoras é rapidamente incorporada por conglomerados multinacionais, enquanto empresas de capital intensivo expandem sua presença em segmentos de software médico e análise de dados clínicos. “A IA torna os ativos intangíveis, como os algoritmos, as patentes, e a base de conhecimento, o novo núcleo da competição”, explica Resende.
No plano metodológico, a dissertação propõe uma integração original entre a análise de trajetórias tecnológicas e a análise de redes de propriedade. A primeira descreve como as inovações evoluem e se acumulam; a segunda mostra quem controla os direitos sobre essas inovações. O cruzamento das duas dimensões permite compreender a estrutura de poder que emerge da convergência entre ciência de dados e biotecnologia. Resende enfatiza que a IA não substitui o conhecimento científico, mas reorganiza a forma como ele é apropriado: algoritmos, bases de dados e plataformas digitais se tornaram as infraestruturas centrais da inovação.
Os dados indicam ainda que as tecnologias baseadas em IA no setor farmacêutico estão fortemente concentradas nos Estados Unidos e China, países onde há políticas públicas consistentes de incentivo à digitalização e proteção de propriedade intelectual. A presença de empresas europeias é mais difusa, enquanto o Brasil e outros países do Sul Global aparecem de forma marginal, sobretudo como usuários de tecnologias importadas. Essa geografia assimétrica da inovação, segundo o autor, tende a reforçar dependências tecnológicas e a limitar a autonomia produtiva de sistemas nacionais de saúde.
Desafios e caminhos para o Brasil
Em sua avaliação, o desafio brasileiro vai além da capacidade técnica. “Apesar de reunir mercados robustos e mão de obra qualificada, o país ainda é uma economia com alta complexidade burocrática, insegurança jurídica e carga tributária elevada. Isso o torna pouco atraente para investimentos de longo prazo”, analisa Resende. Ele ressalta que a IA pode, em tese, reduzir custos e riscos de pesquisa, mas que o ambiente institucional ainda é desfavorável. “Empresas e pesquisadores brasileiros enfrentam escassez de recursos e baixa integração entre indústria e pesquisa. São necessárias reformas que simplifiquem o sistema tributário e apoiem e ampliem a inserção do país nas redes globais de conhecimento e inovação”, aponta.
O orientador Célio Hiratuka, diretor do IE, entende que a premiação também tem significado institucional: “Para o Instituto de Economia, o reconhecimento reafirma uma de suas áreas mais dinâmicas, marcada por uma tradição de pesquisa e ensino voltados à inovação e à tecnologia”, destaca.
Para o autor, compreender essas redes é essencial para a modulação do sistema brasileiro de inovação e de saúde. Ele argumenta que, sem uma estratégia que modifique a regulação e o financiamento da capacitação tecnológica, países em desenvolvimento podem permanecer como dependentes de soluções externas, tendo pouca relevância no processo de evolução tecnológica. “O desafio não é apenas usar IA na saúde, mas construir a infraestrutura institucional, científica e industrial necessária para participar da produção de conhecimento”, conclui.
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O Instituto de Economia da UNICAMP foi criado em 1984 e tem por finalidade a promoção do ensino e da pesquisa na área de Economia.
