Pesquisa analisa duas décadas de dados sobre mercado de trabalho e mostra avanços graduais das cotas de emprego, mas também persistência de lacunas e desafios institucionais.
Por Davi Carvalho
A reserva legal de 2% a 5% de vagas para pessoas com deficiência em empresas de médio e grande porte é uma das políticas públicas mais relevantes de inclusão laboral no Brasil. Criada pela Lei nº 8.213/1991 e regulamentada por decretos e normas posteriores, ela estabelece que empresas com 100 ou mais empregados devem manter em seus quadros um percentual mínimo de trabalhadores com deficiência. A tese de doutorado O direito ao trabalho das pessoas com deficiência no Brasil: uma análise do sistema de cotas no emprego no setor privado, de Guirlanda Maria Maia de Castro Benevides, defendida em agosto de 2025 no Instituto de Economia da Unicamp, examina como essa promessa legal se converteu — ou não — em empregos formais ao longo das últimas duas décadas.
A pesquisa não se limita a sistematizar marcos normativos. Seu foco é mensurar resultados concretos: quantas vagas foram efetivamente preenchidas, onde estão os gargalos e como as crises econômicas impactaram a política. Para isso, Benevides analisou dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) entre 2000 e 2021, identificando tendências, rupturas e limitações metodológicas que afetam a avaliação da política.
A defesa contou com banca examinadora formada por Anselmo Luís dos Santos (orientador), Alexandre Gori Maia, Marcelo Prado Ferrari Manzano, Rita Maria Manjaterra Khater e Carolina Marzola Hirata. Embora de caráter acadêmico, a discussão teve repercussão social evidente: o estudo trata diretamente do direito ao trabalho de uma população historicamente invisibilizada.
Entre a lei e a realidade
O levantamento mostra que houve crescimento contínuo do número de pessoas com deficiência contratadas ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Em 2000, apenas 11,9% das vagas previstas estavam preenchidas; em 2021, o índice chegou a 49,8%. O déficit de contratação caiu de 88,6% para 50,2% no período, mas ainda representa cerca de 412 mil postos não ocupados em empresas que, por lei, deveriam contratá-los.
“De acordo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), houve um importante crescimento do emprego das pessoas com deficiência entre 2000 e 2021. Confirmou-se, assim, um processo lento, mas contínuo, de contratações, o que demonstra a influência afirmativa das cotas de emprego para a população com deficiência”, explica Guirlanda.
A autora destaca que a metodologia oficial apresenta lacunas, sobretudo na forma como é calculada a base de referência das cotas. A ausência de transparência e padronização prejudica a aferição precisa do cumprimento da lei e cria espaço para divergências entre registros administrativos e realidade empresarial. Além disso, há forte heterogeneidade entre setores: alguns absorvem mais trabalhadores com deficiência, enquanto outros resistem ao cumprimento da norma.
Benevides ressalta que a cota é condição necessária, mas não suficiente. Para que cumpra seu papel de inclusão efetiva, precisa ser acompanhada por medidas adicionais: maior articulação entre órgãos públicos de fiscalização e intermediação de mão de obra, integração de políticas sociais e de direitos humanos, além de investimentos em acessibilidade e em tecnologias assistivas.
Resultados, obstáculos e agenda de ação
O estudo também evidencia como as crises econômicas interrompem avanços. Em 2019, pela primeira vez, as vagas preenchidas superaram as não ocupadas, sinalizando um marco positivo. Mas em 2020 e 2021, o impacto da pandemia levou ao fechamento de postos e à reversão dessa trajetória. Em 2021, o nível de contratação ainda não havia retornado ao observado antes da crise sanitária.
A desigualdade estrutural permanece elevada. Dados da PNAD Contínua de 2022 mostram que apenas 29,2% das pessoas com deficiência em idade ativa participavam da força de trabalho, contra 66,4% entre aquelas sem deficiência. A diferença de 37,2 pontos percentuais revela que, mesmo com a política de cotas, grande parte da população segue excluída do mercado formal.
“O sistema de cotas é uma ação afirmativa indispensável, mas não é — e nunca foi — uma política de empregos para pessoas com deficiência. Mesmo que todas as empresas cumpram integralmente a reserva legal, ainda haverá muita gente fora do mercado de trabalho. Falta ao país uma política de emprego definida e articulada para esse público, que combine instrumentos como acessibilidade, formação profissional, intermediação de mão de obra e medidas de apoio e cuidado. Sem esse desenho mais amplo, a cota continua necessária, porém insuficiente para garantir inclusão laboral em escala”, defende a autora.
Com base na análise, a autora propõe uma agenda prática que inclui a criação de um painel público integrado entre RAIS e CAGED, capaz de eliminar inconsistências conceituais e oferecer dados em tempo real; o direcionamento da fiscalização para empresas e setores mais distantes do cumprimento da lei; o fortalecimento do Sistema Nacional de Emprego (SINE), com equipes especializadas e parcerias com entidades de reabilitação; e a adoção de medidas que assegurem ambientes de trabalho acessíveis, envolvendo adaptações arquitetônicas, adequações ergonômicas e protocolos contra o capacitismo. Essas ações, segundo Benevides, não substituem a reserva legal de vagas, mas tornam sua execução viável. O desafio, portanto, não é apenas garantir a permanência da lei no papel, mas transformá-la em prática concreta.
Há, no texto, uma ideia de fundo: o trabalho não é só salário; é lugar social. Para quem foi historicamente empurrado à invisibilidade, obter um emprego formal repercute na renda, na autoestima e no direito a pertencer. Por isso, a autora volta sempre ao contraste: norma/realidade, promessa/execução, passado/presente. A lei abriu caminho; a prática precisa alargar a estrada.
Núcleo de Pesquisas
Criado no âmbito do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit/IE), o Núcleo de Pesquisas sobre Mercado de Trabalho e Pessoas com Deficiência (NTPcD) reúne pesquisadores dedicados a produzir e divulgar evidências sobre a inclusão laboral. O núcleo organiza bases e séries históricas (RAIS, Caged), mantém um observatório com indicadores e publica estudos que subsidiam fiscalização, desenho de políticas e cobertura jornalística. A agenda envolve diagnósticos setoriais e regionais, acompanhamento da Lei de Cotas e cooperação com órgãos públicos e entidades da sociedade civil.
A tese de doutorado de Guirlanda Maria Maia de Castro Benevides, foi a primeira defendida no âmbito do NTPcD. O trabalho fornece um marco metodológico para medir cumprimento das cotas, déficits de contratação e efeitos de crises econômicas sobre o emprego de pessoas com deficiência.