AUTORES
Silvia Masshurá[1],
Antônio Márcio Buainain[2],
Pedro Abel Vieira[3],
Jose Garcia Gasques[4]
1. A relevância da PTF na agricultura
A Produtividade Total dos Fatores (PTF) tem sido amplamente utilizada como indicador-chave do desempenho econômico e produtivo da agricultura. Trata-se da relação entre a quantidade total de bens e serviços produzidos e a quantidade total de insumos utilizados. Em outras palavras, a PTF mede os ganhos de eficiência que não podem ser explicados pelo simples aumento do uso de insumos.
Na agricultura, o crescimento da disponibilidade de alimentos per capita é historicamente atribuído ao aumento da área cultivada, à intensificação do uso de insumos e, principalmente, aos ganhos de produtividade medidos pela PTF. O caso brasileiro é exemplar: desde a década de 1970, graças à expansão da pesquisa agropecuária, liderada pela Embrapa e pelo Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), a agricultura tropical foi transformada em um setor altamente competitivo. A produção agrícola aumentou seis vezes, enquanto a área cultivada cresceu apenas 2,4 vezes, resultando em um dos maiores crescimentos de PTF do mundo.
Os elevados índices de PTF observados na agricultura brasileira indicam ganhos de eficiência na utilização dos fatores de produção, refletindo-se em menores custos unitários, maior retorno sobre os investimentos e crescente competitividade internacional. Esses resultados ajudam a explicar o papel do Brasil como um dos principais exportadores mundiais de alimentos.
Gráfico 1: Variação da Produtividade Total dos Fatores (PTF), do Produto e das Emissões de Gases do Efeito Estufa (Emissões do Agro) da agricultura brasileira entre 1990 a 2023.
Entre 1990 a 2023 o produto agropecuário cresceu 3,5 vezes, passando de 165 para 569. As emissões de gases do efeito estufa cresceram menos de duas vezes passando de 100 para 188, graças à inovação e elevação de produtividade captada pela PTF. Se a intensidade de emissões não tivesse mudado desde 1990, as emissões da agropecuária em 2023 seriam de aproximadamente 356 na mesma unidade usada em 1990.
2. Limitações conceituais e operacionais da PTF
Apesar de sua ampla utilização, a PTF apresenta limitações relevantes, sobretudo em contextos heterogêneos como o da agricultura brasileira. Em primeiro lugar, ela parte do pressuposto de que os fatores de produção são homogêneos e plenamente mensuráveis, o que raramente se verifica na prática. A terra, por exemplo, pode ter qualidades muito distintas em diferentes regiões; o trabalho pode variar enormemente em qualificação; o capital pode ser acessado em condições desiguais.
Outro ponto crítico diz respeito à valoração dos insumos e produtos utilizados no cálculo da PTF, que normalmente se baseia em preços de mercado. Essa abordagem pode introduzir distorções, sobretudo quando se trata de fatores não mercantis ou precificados de forma inadequada. Elementos como o uso da biodiversidade, os serviços ecossistêmicos ou os impactos sobre comunidades locais, por exemplo, permanecem fora do radar da PTF tradicional.
Como se Calcula a Produtividade Total dos Fatores (PTF)?
A Produtividade Total dos Fatores (PTF) é um indicador que mede a eficiência com que todos os insumos (terra, trabalho, capital etc.) são utilizados para gerar produção agrícola. Diferentemente da produtividade parcial (como produtividade da terra ou da mão de obra), a PTF considera o conjunto dos fatores de produção.
A fórmula básica da Produtividade Total dos Fatores (PTF) é:
PTF = Produto Total/Insumos Totais
Onde:
- Produto Total é o volume físico (ou valor agregado) de todos os bens produzidos.
- Insumos Totais são as quantidades utilizadas de terra, trabalho, capital, insumos químicos, máquinas etc.
Exemplo Simplificado:
Se uma propriedade aumentou sua produção de 100 para 120 toneladas usando a mesma quantidade de terra, insumos e trabalho, houve um ganho de produtividade total. O aumento não foi causado por mais insumos, mas por maior eficiência — fruto de melhores técnicas, sementes, manejo etc.
Relação com o Crescimento Econômico:
A variação da produção agrícola pode ser decomposta assim:
Onde:
- crescimento da produção;
- crescimento dos diferentes insumos;
- parte do crescimento explicada por eficiência e inovação tecnológica.
Limites Importantes:
- Não diferencia insumos de qualidades distintas (ex.: terra fértil vs. terra arenosa);
- Ignora impactos ambientais negativos (ex.: desmatamento);
- Não reflete a rentabilidade do produtor.
Adicionalmente, é preciso cautela ao utilizar a PTF para comparações entre países ou regiões. Apesar de frequente na literatura, esse tipo de benchmarking pode ser enganoso. As metodologias de cálculo variam consideravelmente entre os estudos, assim como as condições estruturais — como nível tecnológico, qualidade da terra, infraestrutura e institucionalidade — que influenciam diretamente os resultados. Regiões em estágios iniciais de desenvolvimento tecnológico tendem a apresentar aumentos mais expressivos de PTF, não necessariamente por serem mais eficientes, mas por partirem de bases muito baixas. Já regiões próximas à fronteira tecnológica apresentam, por definição, ganhos incrementais mais modestos. Ignorar essas assimetrias pode levar a interpretações equivocadas sobre desempenho relativo e induzir políticas inadequadas.
Portanto, embora útil como indicador agregado de eficiência técnica, a PTF precisa ser lida com cautela e, sempre que possível, complementada por análises qualitativas e indicadores que captem melhor a diversidade, a equidade e a sustentabilidade dos sistemas agrícolas.
3. A rentabilidade como métrica complementar
A produtividade, medida pela PTF, não deve ser confundida com rentabilidade. Um sistema altamente produtivo pode operar com margens de lucro estreitas ou mesmo negativas, dependendo dos custos e dos preços de mercado. Assim, produtividade sem rentabilidade não assegura a sustentabilidade econômica da atividade agrícola.
A análise da rentabilidade permite compreender se os ganhos de eficiência têm se traduzido em melhoria real da renda dos produtores. Isso é essencial tanto para orientar decisões empresariais quanto para formular políticas públicas eficazes. Uma PTF crescente pode coexistir com crises de renda, especialmente em contextos de elevada volatilidade de preços ou aumento expressivo dos custos de produção.
Além disso, é importante reconhecer um trade-off historicamente negligenciado: o equilíbrio entre rentabilidade e conformidade com normas sociais e ambientais. No passado, práticas hoje inaceitáveis — como jornadas exaustivas de trabalho, ausência de direitos trabalhistas e exploração predatória dos recursos naturais — eram frequentemente toleradas em nome da eficiência econômica. Esse cenário mudou radicalmente. As exigências da sociedade em relação à proteção ambiental e ao respeito aos direitos sociais se tornaram mais rígidas, estruturadas e inegociáveis.
Nesse novo contexto, a inovação tecnológica deixa de ser apenas um vetor de aumento de produtividade e passa a ser a principal ferramenta para equacionar um dilema mais complexo: como manter a rentabilidade em um ambiente regulatório mais exigente, socialmente justo e ambientalmente sustentável? A capacidade de gerar valor respeitando esses limites será, cada vez mais, o diferencial competitivo do setor agrícola.
4. A questão ambiental: externalidades ignoradas
Outro limite crítico da PTF é a ausência de consideração das externalidades ambientais. O indicador tradicional não distingue entre ganhos obtidos com respeito ou com degradação ambiental. O desmatamento, a perda de biodiversidade, a contaminação do solo e da água e as emissões de gases de efeito estufa são ignoradas pela lógica produtivista da PTF.
Um avanço conceitual importante nesse debate foi promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que em 2022 instituiu um grupo de trabalho voltado à análise da relação entre Produtividade Total dos Fatores e meio ambiente (OECD Food, Agriculture and Fisheries Paper, n.º 177). A proposta central desse grupo é superar as limitações da PTF tradicional ao reconhecer que a produtividade, para ser de fato sustentável, deve incorporar os impactos ambientais do processo produtivo.
A chamada “PTF verde” propõe que reduções de poluição, emissões ou uso de recursos naturais sejam consideradas ganhos de produtividade, enquanto o uso excessivo de capital natural — como água, solo ou cobertura vegetal — seja tratado como perda de produtividade, mesmo que isso não se reflita imediatamente nos preços de mercado. Isso implica a necessidade de ajustes metodológicos, como a introdução de preços-sombra para bens e serviços ambientais não mercantis (como o carbono emitido ou a biodiversidade perdida), que desafiam os métodos tradicionais baseados exclusivamente em preços de mercado.
O reconhecimento de que externalidades ambientais devem entrar no cálculo da produtividade representa um passo crucial para redefinir o conceito de eficiência na agricultura contemporânea. No caso brasileiro, essa abordagem é particularmente relevante, dada a magnitude dos passivos e ativos ambientais envolvidos na expansão e intensificação do setor agropecuário.
Essa nova abordagem requer avanços metodológicos, como a adoção de estimativas de preços-sombra para bens e serviços ambientais não mercantis, e impõe uma mudança de paradigma: produtividade não é mais apenas uma questão de eficiência técnica, mas também de sustentabilidade ecológica.
5. Considerações finais
A PTF é, sem dúvida, uma ferramenta poderosa para compreender a dinâmica da agricultura moderna, especialmente no que diz respeito à difusão de inovações tecnológicas e ao uso eficiente dos fatores produtivos. No entanto, como demonstrado ao longo deste artigo, seu uso isolado pode levar a interpretações enganosas, obscurecendo desigualdades estruturais, impactos ambientais e limitações econômicas.
As dificuldades metodológicas envolvidas em sua mensuração — desde a valoração dos insumos até a comparação entre realidades produtivas distintas — exigem cautela em seu uso, especialmente como base para formulação de políticas públicas ou avaliação de desempenho relativo entre países e regiões. A diversidade de métodos, contextos institucionais e estágios de desenvolvimento técnico torna necessária uma leitura crítica de seus resultados.
Além disso, a crescente complexidade das demandas da sociedade — no que se refere à justiça social, à preservação ambiental e à segurança alimentar — impõe novos desafios à avaliação do desempenho da agricultura. A simples maximização da eficiência técnica, medida pela PTF, já não é suficiente para caracterizar o sucesso de um sistema agrícola.
É urgente desenvolver mecanismos complementares de monitoramento que permitam captar dimensões hoje invisíveis à PTF tradicional, como a geração de empregos de qualidade, o respeito aos direitos sociais e o impacto ambiental das práticas produtivas. Esses instrumentos devem servir não apenas para diagnosticar, mas também para orientar políticas de incentivo e reconhecimento. Premiar produtores que conciliam rentabilidade com responsabilidade socioambiental é uma estratégia promissora para alinhar o desenvolvimento agrícola às exigências da sociedade contemporânea.
Nesse cenário, a inovação deixa de ser apenas um vetor de produtividade e se torna a chave para equilibrar uma equação cada vez mais exigente: eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ambiental. A agricultura do futuro será julgada não apenas por quanto produz, mas por como e para quem produz.
[1] Presidente da Embrapa.
[2] Professor da Unicamp
[3] Pesquisador da Embrapa
[4] Pesquisador do IPEA