Uma análise inédita mostra como a contribuição da indústria ao desenvolvimento se enfraqueceu nas últimas duas décadas e por que a reindustrialização exige mais do que repetir políticas do passado.

 

DISSERTAÇÃO

 

Por Davi Carvalho

 

No início dos anos 2000, a narrativa predominante em boa parte da América Latina e da África ainda apostava na indústria como o caminho seguro para o desenvolvimento econômico. A lógica parecia sólida: expandir a participação da manufatura no PIB, avançar em produtividade e transformar essa base produtiva em ganhos de renda e bem-estar. Duas décadas depois, o retrato é mais complexo e menos otimista. Entre transformações tecnológicas, volatilidade macroeconômica e mudanças nas cadeias globais de valor, a contribuição da indústria ao desenvolvimento parece ter atingido um ponto de inflexão — e, em muitos casos, estar em declínio.

É nesse contexto que Flávio Vinicius Silva Ferreira de Souza defendeu no Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação de Antônio Carlos Diegues, a dissertação “Desindustrialização e os limites da contribuição da indústria ao desenvolvimento na América Latina e África: revisitando a hipótese da curva em U-invertido”. Mais do que confirmar ou refutar essa hipótese, o trabalho se propõe a medir com precisão como esse movimento ocorreu nas duas regiões entre 2000 e 2019 — e quais as consequências para o futuro da industrialização.

Para isso, o autor parte de um conjunto de dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) e do Banco Mundial. Com eles, aplica uma metodologia de decomposição estrutural — conhecida como shift-share — que permite identificar quanto do crescimento da produtividade do trabalho e da remuneração média dos trabalhadores se deve à realocação de recursos entre setores (mudança estrutural) e quanto é resultado de ganhos dentro de cada setor (componente intrasetorial). Em seguida, testa a relação entre esses indicadores e o nível de renda per capita usando modelos econométricos em painel, com efeitos fixos, para os países das duas regiões.

 

A curva em U-invertido e os limites da industrialização

 

Segundo o pesquisador, a escolha dessas variáveis não foi casual. “O desenvolvimento econômico resulta de um processo de transformação estrutural, caracterizado pela sofisticação produtiva e sustentado por uma interação mutualista com a industrialização”, explica. Nesse processo, “a indústria contribui para o desenvolvimento principalmente por três vias: a promoção do crescimento da produtividade, a geração de empregos com salários acima da média da economia e a elevação do nível de sofisticação das exportações nacionais”.

Flávio destaca que a maior parte dos estudos existentes ainda mede essa contribuição apenas pelo peso da indústria no PIB. “Nossa proposta foi inovar ao analisar produtividade e salários a partir de uma perspectiva subsetorial, considerando a participação relativa de diferentes setores industriais conforme sua intensidade tecnológica.” O exercício de decomposição estrutural, afirma, “permite não apenas mensurar a dimensão setorial desagregada da indústria, mas também revelar quais segmentos exerceram maior protagonismo e quais lideraram o processo de transformação estrutural do período”.

Os resultados desafiam qualquer leitura simplista. O movimento de mudança estrutural no período foi predominantemente negativo ou estagnado na maioria dos países, embora parte dos africanos tenha apresentado avanços relativos na produtividade industrial. A hipótese da curva em U-invertido se confirma tanto pelo canal da produtividade quanto pelo dos salários médios: à medida que a renda per capita aumenta, a contribuição líquida da indústria para o desenvolvimento se reduz. Isso sugere que, após certo ponto, o crescimento passa a depender de outros setores ou de mudanças qualitativas na própria base industrial.

O autor ressalta que essa trajetória ocorreu em patamares muito baixos. “Entre 2000 e 2019, a curva em U-invertido se formou já em níveis incipientes de renda per capita nos países da América Latina e da África”, observa. Essa constatação, segundo ele, impõe desafios significativos a economias que historicamente apresentam “estruturas setoriais heterogêneas e um elevado grau de imaturidade industrial”.

 

Entre setores de baixa tecnologia e o desafio da reindustrialização

 

Outro ponto crítico é a persistência de estruturas produtivas concentradas em setores de baixa intensidade tecnológica. “São atividades distantes da fronteira tecnológica internacional, com baixo potencial inovativo e reduzidas possibilidades de ganhos de produtividade”, afirma. A saída, sustenta Flávio, depende de “um amplo movimento de renovação estrutural que articule diferentes instituições, instrumentos e políticas industriais voltadas à geração de conhecimento, à formação de capacidades dinâmicas locais e ao upgrade tecnológico dos setores existentes”.

Essa agenda, acrescenta, ganha relevância em meio às transformações globais. O avanço da digitalização, a Indústria 4.0, a emergência climática e a pressão por produções sustentáveis configuram, em sua avaliação, “oportunidades concretas para processos de reindustrialização, desde que os países consigam superar o aprisionamento em atividades de baixo valor agregado”.

Outro achado relevante é que, em ambas as regiões, a estrutura produtiva segue fortemente concentrada em setores de baixa intensidade tecnológica. Isso significa que, mesmo quando há ganhos de produtividade, eles não estão necessariamente vinculados à expansão de segmentos mais sofisticados e integrados às cadeias globais de maior valor agregado. Na África, o componente de crescimento intrasetorial pesa mais, indicando que os ganhos vêm principalmente de melhorias internas nos setores existentes. Na América Latina, a situação é mais estática, com pouco dinamismo na recomposição setorial.

Ao organizar os dados por intensidade tecnológica e por componentes da decomposição (dinâmica, estática e intrasetorial), a dissertação oferece um panorama detalhado das trajetórias nacionais. Gráficos e tabelas permitem comparar períodos (2000-2010 e 2010-2019), revelando nuances que escapam a análises mais agregadas: casos em que a produtividade cresce, mas os salários permanecem estagnados; ou países que avançam em setores de média tecnologia, mas perdem espaço nos de alta.

Esse diagnóstico empírico se insere num debate que volta a ganhar centralidade. Em meio à reconfiguração das cadeias produtivas globais, à disputa tecnológica entre grandes potências e à urgência de transições para economias mais sustentáveis, políticas industriais voltam ao centro da agenda. No entanto, como o trabalho aponta, não basta recuperar instrumentos clássicos de proteção e incentivo à manufatura. É preciso formular estratégias de longo prazo, capazes de combinar capacitação tecnológica, financiamento estável e coordenação entre atores públicos e privados, mirando ecossistemas produtivos mais diversificados e resilientes.