Pesquisa mostra que o desenho das políticas de transferência de renda pode ter efeitos distintos sobre a formalização do trabalho e revela impactos heterogêneos por gênero, raça e setor econômico.

 

Por Davi Carvalho

 

A monografia "Transferência de renda condicionada e o mercado de trabalho formal: uma análise dos municípios brasileiros", de Julia Manini Martins Bonilha, defendida no Instituto de Economia da Unicamp sob orientação do professor Alexandre Gori Maia, analisou os efeitos do Programa Bolsa Família sobre o emprego formal nos municípios brasileiros entre 2014 e 2020. O trabalho, que utiliza dados de painel para avaliar diferenças por gênero, raça e setor econômico, recebeu o primeiro lugar no Prêmio Corecon-SP de Excelência em Economia – Concurso de Monografias 2025, entregue no dia 28 de agosto durante o Encontro de Economia do Sudeste.

 

A pesquisa parte de uma questão central: de que forma políticas de transferência de renda condicionada, concebidas para aliviar a pobreza e reduzir desigualdades, interferem no funcionamento do mercado de trabalho formal? Em um país marcado pela elevada informalidade e pela heterogeneidade estrutural, essa pergunta ganha ainda mais relevância. Julia explorou a relação examinando tanto o número de famílias beneficiárias quanto o valor médio recebido por cada domicílio, utilizando dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e dos registros de pagamento do Bolsa Família.

 

Os resultados indicam que quando aumenta o número de famílias atendidas, há correlação negativa com a formalização do trabalho, atingindo de maneira mais significativa a população preta e parda e os vínculos do setor primário. Já quando o foco recai sobre o valor médio das transferências, o efeito se inverte: maiores repasses estão associados ao crescimento do emprego formal, em especial entre trabalhadores negros e no setor de serviços. Essa distinção indica que o formato da política pode ser tão ou mais importante que sua abrangência, ao apontar que o aumento dos valores pagos tem potencial de mitigar impactos adversos e até de estimular novas contratações formais.

 

O trabalho propõe uma interpretação mais ampla sobre os mecanismos que ligam as transferências ao mercado de trabalho. O repasse de renda, ao elevar o consumo das famílias, pode funcionar como multiplicador da atividade econômica em setores menos sujeitos a “vazamentos” externos, como comércio e serviços locais. Entretanto, a focalização e a natureza condicional do programa podem incentivar trabalhadores a permanecerem fora do setor formal para não perder o benefício. Essa tensão ajuda a explicar os resultados heterogêneos encontrados.

 

Impactos heterogêneos e os dilemas do desenho das políticas

 

A própria autora explica que a escolha do Bolsa Família como objeto de pesquisa não foi casual:
“A escolha do Bolsa Família como objeto central da minha monografia foi resultado de uma série de influências ao longo da graduação e de um interesse prévio em compreender melhor o papel das políticas públicas. Para mim, a questão central sempre foi o impacto do programa na redução das desigualdades sociais. Por isso, a pesquisa deu muita ênfase aos recortes sociais, analisando os efeitos do Bolsa Família por gênero, raça e setor econômico”, pontua.

 

Essa motivação tem raízes ainda anteriores ao ingresso no curso de Ciências Econômicas:
“Na verdade, essa temática já me acompanhava desde antes da graduação. Em 2019, eu participei do Unicamp Portas Abertas e assisti a uma palestra no IE sobre desigualdade de gênero na economia. Essa palestra foi determinante para a minha escolha de estudar Ciências Econômicas na Unicamp. Durante a faculdade, aprofundei ainda mais esse interesse, especialmente no período em que estive no Observatório Francês de Conjuntura Econômica, onde pesquisei os impactos de políticas públicas sobre as desigualdades, com foco em gênero. Assim, o Bolsa Família representou para mim um objeto de estudo que sintetiza esses interesses”, explica.

 

A análise, que cobre o período de 2014 a 2020, insere-se em um contexto de baixo crescimento econômico, aumento da informalidade e crise sanitária e social provocada pela pandemia da COVID-19. Diferentemente de trabalhos anteriores focados nos anos de expansão econômica da primeira década dos anos 2000, a monografia de Julia ilumina os efeitos do Bolsa Família em um cenário adverso, marcado pela retração fiscal e por limitações estruturais no mercado de trabalho. Essa escolha reforça o caráter contemporâneo e desafiador da pesquisa, capaz de trazer novas perspectivas a um debate que muitas vezes se apoia em evidências de períodos mais favoráveis.

 

A autora também chama atenção para a dimensão das desigualdades raciais e de gênero. Mulheres e pessoas negras, grupos que concentram a maior parte dos beneficiários do programa, são os que mais sentem os impactos da política tanto positiva quanto negativamente. Os resultados sugerem que as transferências, quando bem calibradas, podem funcionar como alavancas de inclusão no mercado de trabalho formal, mas, quando insuficientes, podem reproduzir mecanismos de exclusão e precarização.

 

Sobre a contribuição de seu trabalho para o debate público, Julia ressalta:
“Acredito que políticas sociais e mercado de trabalho devem ser pensados em conjunto. A principal contribuição da minha monografia é mostrar que, do ponto de vista do emprego formal nos municípios, ampliar o valor do benefício tende a gerar impactos mais positivos do que simplesmente aumentar o número de famílias beneficiárias. Embora o estudo tenha analisado o período de 2014 a 2020, uma realidade distinta da atual, a discussão permanece relevante.”

 

Ela acrescenta que a pesquisa também lança luz sobre a heterogeneidade dos impactos:
“Além de evidenciar que os valores mais altos do benefício têm efeitos mais fortes sobre o emprego formal, a pesquisa mostra que esse impacto é heterogêneo, variando por gênero, raça e setor econômico. Esse olhar segmentado traz resultados diferentes do que costumamos ver em estudos focados apenas em gênero e abre espaço para reflexões mais profundas sobre como melhorar a estrutura das políticas de transferência de renda e também das políticas de emprego. Ainda assim, ressalto que são necessárias mais pesquisas para avaliar se esse impacto do valor do Bolsa Família no mercado de trabalho é realmente causal e se aumentar o benefício é, de fato, a estratégia mais adequada, já que há outras restrições e desafios para a formulação de políticas sociais no Brasil.”

 

O júri destacou a originalidade do recorte, a consistência metodológica e a capacidade de dialogar com um tema de grande relevância nacional. A premiação foi anunciada durante o oitavo Encontro de Economia do Sudeste, organizado pelo Corecon-SP, espaço que reuniu estudantes, pesquisadores e profissionais da área para debater temas como desenvolvimento regional, inovação e políticas públicas.