Dissertação recompõe, em mais de um século, o fio tenso entre capitalismo periférico e hierarquias raciais na Região Metropolitana de São Paulo, da abolição às plataformas digitais — e mostra por que escolaridade, leis e programas corporativos ainda não bastam.

 

Por Davi Carvalho

 

Em São Paulo, cada ciclo de modernização — do café à indústria, da CLT aos aplicativos — reescreveu o mapa do trabalho sem alterar o essencial: quem carrega os pesos mais pesados, ganha menos e está mais exposto ao desemprego e à informalidade continua sendo, majoritariamente, a população negra. É essa persistência que organiza a investigação de Taís Dias de Moraes, em "As pressões do capitalismo periférico nas relações raciais: o exemplo da Região Metropolitana de São Paulo", dissertação defendida no Instituto de Economia da Unicamp sob orientação de Marcelo Weishaupt Proni. Ao percorrer 1888–2022, a autora articula história econômica, legislação, mercado de trabalho e ideologias de raça para sustentar uma tese desconfortável: a desigualdade racial não é resíduo de atraso, mas componente funcional do nosso desenvolvimento tardio — e por isso muda de forma para permanecer.

Mesmo sendo maioria do país, as pessoas negras seguem em desvantagem em praticamente todos os indicadores. Em 2022, a renda das pessoas brancas era 87% maior do que a das pessoas negras; a informalidade as atinge com mais força; e, à medida que sobe a escolaridade, o diferencial de rendimentos cresce, não diminui. A promessa meritocrática, quando testada, revela o truque: o funil aperta no topo.

Essa história começa nos anos finais do século XIX, quando a abolição lança a pergunta: como reorganizar o trabalho sem o cativeiro? Nas fazendas paulistas, a resposta preferida foi financiar “a mão certa”: a imigração europeia, justificável por razões econômicas e sedutora por fantasias de branqueamento. O efeito foi imediato no campo e decisivo na cidade. Enquanto São Paulo erguia, com dinheiro do café, o seu capitalismo urbano, os postos mais qualificados no artesanato, no comércio e depois na indústria foram sendo ocupados por brancos — em larga medida, imigrantes. Aos libertos, sobravam as margens: serviços desprotegidos e subempregos.

A autora recompõe um debate clássico para mostrar que o peneiramento e a barragem de trabalhadores negros resultaram de escolhas: subsídios públicos à imigração, ausência de política de transição pós-Abolição, difusão do mito da democracia racial e uma cultura patronal que naturalizou a exclusão sob a linguagem da “adaptação ao trabalho livre”.A cidade erigiu um mercado de trabalho ‘moderno’ com os traços típicos da periferia capitalista: heterogeneidade extrema, massa excedente, organização precária das relações de trabalho e uma elasticidade que beneficia o empregador. O exército industrial de reserva não é um acidente, é um mecanismo — e, por aqui, tem cor.

O Estado Novo e a CLT criaram uma gramática de direitos, mas deixaram de fora justamente ocupações em que os negros estavam sobrerrepresentados. A industrialização e a urbanização ampliaram o assalariamento, sim; também abriram frestas de mobilidade para parcelas da população negra. Mas as portas que se abriram eram estreitas, as escadas, íngremes, e o corrimão, curto. O resultado foi um mercado de trabalho com inclusão seletiva e precariedade persistente.

 

Direitos no papel, barreiras no cotidiano

 

A Constituição de 1988 trouxe a sociedade civil para dentro do pacto; o movimento negro entrou em cena com força e arrancou conquistas. Anos depois, as agendas chamadas de “neodesenvolvimentistas” combinaram crescimento, políticas sociais e ações afirmativas. A curva, por um tempo, melhorou. Ainda assim, a autora insiste: a arquitetura de base não cedeu. Em parte porque o consenso político para políticas universalistas e antirracistas estruturantes foi curto; em parte porque a lógica da acumulação periférica continua exigindo muitos nas margens para sustentar poucos no centro.

A recessão de 2015-2016 foi o estalo para uma inflexão mais dura: austeridade, reforma trabalhista, terceirização ampla, uberização. O “neoliberalismo com face social” avançou em manuais e relatórios, mas, do lado de fora, a fila da plataforma seguiu comprida. O ciclo da pandemia expôs o paradoxo: um governo que normalizou o discurso preconceituoso foi, por força das circunstâncias, empurrado a ampliar transferências de renda a informais para evitar um colapso humanitário. Passado o choque, as estruturas retomaram sua forma: recuperação econômica com desigualdades reconstituídas.

Ao analisar microdados da PNAD Contínua (2014, 2016, 2018, 2020 e 2022), a dissertação descreve esse movimento: pretos e pardos seguem com maior probabilidade de estarem em ocupações informais e mal remuneradas; quando entram em postos formais, ficam concentrados em níveis hierárquicos mais baixos; os prêmios salariais associados à educação são menores para negros e, em vários patamares, o fosso se alarga. A escolaridade melhora trajetórias individuais, mas não corrige vieses de seleção, promoção e remuneração.

 

“Os resultados mostram que o diferencial de rendimentos entre negros e brancos se intensifica especialmente a partir do ensino médio completo e se acentua no nível superior. Esse ‘efeito teto’ evidencia que a educação, embora necessária, não basta para superar barreiras estruturais. Pactos silenciosos da branquitude filtram as trajetórias, sobretudo quando trabalhadores negros chegam a espaços de liderança, onde passam a ser vistos como ‘fora de lugar’”, explica Taís.

 

A autora retoma conceitos como capitalismo periférico, massa marginal e heterogeneidade estrutural para mostrar que a segmentação do mercado de trabalho serve à acumulação e é reforçada por um pacto tácito: a branquitude como referência de aptidão e a retórica da igualdade como cobertura. A cada fase, a forma se ajusta — do capataz à avaliação de desempenho, do barracão à “flexibilidade” —, mas a função permanece. Enquanto o Estado hesita entre omissão e reformas regressivas, empresas terceirizam risco e custo, e a cidade se acostuma à roda que gira sem sair do lugar.

No discurso corporativo, a diversidade virou palavra de ordem. Estágios, trainees e programas de inclusão multiplicaram-se na última década. No entanto, a dissertação mostra que essas iniciativas, ainda que importantes, não abalam as camadas profundas das carreiras.

“Os programas de diversidade trouxeram avanços em recrutamento e cargos de entrada, mas se mostraram parciais. A promoção e a remuneração seguem limitadas por obstáculos institucionais. A presença de negros em posições de comando continua rara, e muitas vezes essas práticas funcionam como ‘diversity washing’, mais retórica do que transformação. No conjunto do mercado, marcado pela terceirização e pela uberização, a massa trabalhadora negra permanece na base precarizada”, denúncia Taís.

No fim do percurso, São Paulo aparece como laboratório e espelho. Laboratório porque concentrou o que o país teve de mais moderno em finanças, indústria, serviços e tecnologia; espelho porque refletiu, em escala, as continuidades do poder no trabalho. Depois de mais de cem anos, a precariedade que cercava os libertos reaparece, agora mediada por algoritmos e contratos intermitentes. Trocaram-se os nomes, preservaram-se as hierarquias.

A pergunta que resta não pede retórica, pede projeto: que política de Estado, e por quanto tempo, pode desarmar uma estrutura que opera há mais de um século? A resposta supõe metas e cronograma, mas começa por reconhecer o óbvio que a dissertação evidencia: sem mexer no desenho do mercado de trabalho e nos incentivos à reprodução da desigualdade — do financiamento público às regras de contratação, da fiscalização às carreiras públicas —, a velocidade do progresso será sempre inferior à inércia da exclusão.