Tese defendida no Instituto de Economia recompõe meio século de gastos federais e revela como os ciclos políticos moldaram a expansão e o bloqueio do "Estado de Bem-Estar” brasileiro.

 

Por Davi Carvalho

 

O economista André Luiz Passos Santos analisou meio século de contas públicas para entender como o Brasil financiou — e interrompeu — a construção de seu “Estado de Bem-Estar Social”. A pesquisa recompõe a trajetória dos gastos federais com educação, saúde, previdência, assistência, cultura e habitação, e investiga como as mudanças de regime político e de orientação econômica afetaram o padrão de financiamento das políticas sociais.

A tese, intitulada “Expansão e estagnação: financiamento do Estado de Bem-Estar Social no Brasil, 1946-1988”, foi defendida no Instituto de Economia da Unicamp sob orientação do professor Pedro Paulo Zahluth Bastos. O estudo cobre duas Constituições e três períodos de governo — democracia, ditadura e redemocratização — e mostra que a evolução do gasto social brasileiro seguiu o ritmo das disputas políticas e fiscais de cada época.

Entre o fim da Segunda Guerra e o início dos anos 1960, o país viveu uma fase de construção institucional e crescimento dos gastos sociais. O orçamento da União começou a refletir a ideia, ainda incipiente, de que desenvolvimento econômico e políticas públicas podiam caminhar juntos.

Com o golpe de 1964, esse movimento foi interrompido. O Estado continuou gastando, mas de modo seletivo e desigual. “Previdência e educação foram os principais destinos do gasto social, mas com forte concentração em grupos privilegiados”, explica.

Nos governos Vargas e Goulart, cerca de 20% das despesas previdenciárias eram voltadas ao regime geral, destinado aos trabalhadores urbanos de baixa e média renda. Nos demais períodos, esse percentual variou entre 10% e 15%, caindo para apenas 5% após a criação do INPS. “Entre 80% e 95% dos gastos previdenciários da União foram voltados aos servidores públicos, em especial oficiais militares, magistrados, procuradores e a administração fiscal do Estado”, detalha o pesquisador.

Na média histórica, quase metade de todo o gasto social federal ficou concentrada em uma pequena parcela da população. Na educação, o padrão se repetiu: a prioridade orçamentária recaiu sobre o ensino superior, fortemente elitizado. Depois de 1964, o regime militar incentivou a expansão do setor privado, com subsídios e crédito estudantil, o que impulsionou o crescimento de universidades particulares, muitas vezes de baixa qualidade e sem integração ao sistema público.

“Esses números mostram o que a literatura chama de cidadania regulada: o Estado definia quem era ou não cidadão dotado de direitos sociais”, observa o autor. Até meados dos anos 1960, apenas os trabalhadores vinculados aos antigos Institutos de Aposentadoria e Pensão tinham acesso à saúde previdenciária. Após 1967, o direito se estendeu aos empregados formais, mas os informais e os rurais permaneceram fora do sistema. A universalização dos direitos sociais, que só viria com a Constituição de 1988, teve como antecessores fragmentos de políticas corporativas e focalizadas.

A pesquisa também mostra que, durante a ditadura, diversos gastos sociais importantes foram submetidos a uma lógica de autofinanciamento e privatização — como é o caso da saúde previdenciária, custeada por contribuições; da habitação, financiada de forma cada vez mais voltada à classe média; do saneamento, o que ajuda a explicar parte da queda abrupta dos gastos orçamentários em saúde; e da educação. Ao final do regime, a rede de ensino superior privada já concentrava a maior parte das matrículas.

 

O retorno do social e a Constituinte de 1988

 

Nos anos 1980, em meio à recessão e à crise da dívida, o gasto social voltou ao centro do debate público. A transição democrática reabriu espaço para políticas voltadas à população e para a discussão de uma nova arquitetura fiscal. Santos identifica, nesse período, uma recuperação do investimento social, especialmente em educação e saúde — áreas que ganharam impulso durante o governo Sarney, marcado pela ampliação do atendimento público e pelo início do processo de universalização da saúde, ainda antes da criação do SUS. Embora a participação da previdência no orçamento também tenha crescido em relação à ditadura, esse aumento foi mais limitado. “A Constituição de 1988 consolidou demandas acumuladas por décadas e transformou o gasto social em compromisso de Estado”, afirma o pesquisador. 

Durante os anos 1980, foram criados tributos como o PIS/Cofins e a CSLL, voltados ao financiamento da previdência do regime geral. Posteriormente, no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), essas receitas perderam a vinculação obrigatória, o que reduziu a previsibilidade dos recursos. A análise reforça que a resistência das elites em contribuir de forma progressiva é uma das características mais persistentes da estrutura fiscal brasileira.

“Desde Vargas, o país prefere tributar o consumo a taxar renda e patrimônio. FHC aumentou a carga tributária, mas a tornou mais regressiva, ao isentar lucros e dividendos do imposto de renda”, explica. Essa tendência, segundo o autor, manteve o Estado social dependente de fontes regressivas e instáveis, o que limita a capacidade de financiar políticas universais e sustentáveis.

O pesquisador argumenta que o equilíbrio entre estabilidade macroeconômica e financiamento do bem-estar permanece o grande dilema brasileiro. “A Constituição universalizou direitos, mas não resolveu o problema estrutural do financiamento. O desafio é garantir justiça tributária e estabilidade democrática para sustentar o pacto social de 1988”, explica.

 

Um mapa das contradições

 

A originalidade do trabalho está no método. Ao utilizar exclusivamente os Balanços Gerais da União para reclassificar rubricas e reconstruir séries históricas, Santos criou uma base empírica inédita sobre o comportamento do gasto social. A partir dela, foi possível medir com precisão como o investimento público reagiu aos ciclos políticos e econômicos do país.

O levantamento mostra que, nos períodos democráticos, a proporção de gastos sociais cresceu de forma contínua, mesmo sob restrições fiscais. Já nos regimes autoritários, as despesas se concentraram em grupos vinculados ao Estado, com menor impacto redistributivo. A transição dos anos 1980 rompeu parcialmente esse padrão, mas não eliminou a desigualdade estrutural na distribuição dos recursos públicos.

O autor observa que o comportamento das contas sociais revela algo mais profundo: “As escolhas fiscais refletem as escolhas políticas e morais de uma sociedade. Onde o Estado gasta — e com quem — é um espelho de suas prioridades”, resume.

A trajetória mapeada mostra que o Brasil experimentou o crescimento do gasto social sem, necessariamente, alcançar um Estado de Bem-Estar consolidado. O país ampliou o acesso à previdência, criou universidades, construiu hospitais e programas habitacionais, mas manteve a desigualdade como constante estrutural.

Entre 1946 e 1988, o gasto social da União saltou de cerca de 5% para 18% do orçamento total, com oscilações marcadas por golpes, crises e transições. A Constituição de 1988 consagrou o direito universal à saúde, à assistência e à educação, mas o financiamento permaneceu dependente de impostos indiretos e de um sistema tributário regressivo.

O estudo conclui que o desafio contemporâneo não é apenas fiscal, mas político: como preservar o pacto social de 1988 em meio a pressões por austeridade e à resistência histórica à redistribuição. “As cifras mostram que o Estado brasileiro tem vocação para o social, mas ainda não encontrou o equilíbrio entre solidariedade e sustentabilidade”, afirma o autor.